sexta-feira, novembro 11, 2005

Psiquiatria...

Dia 1


Depois de dormir não muito confortavelmente num anexo de um sofá onde mal cabia, era chegada a hora de carregar o automóvel com malas e pertences descarregados há apenas um dia. Explico porquê…só conseguimos (eu e a minha colega) arranjar casa em cima da hora, e apenas podíamos entrar dia 7. Assim, e tendo em conta que tínhamos de nos apresentar às 10 da manhã no serviço, o local disponível para pernoitar foi a habitação da prima da minha actual colega de casa, em Rio de Mouro, perto de Sintra, o que faz com que no dia D (novamente D de estágio), após ouvir falar muito sobre o famoso IC19, tive o prazer de o vivenciar na pele…mas, ao que parece, não foi dos dias piores, felizmente.
Ainda não sei bem como, mas certo é que fomos “desaguar” mesmo ao lado do Parque da Saúde de Lisboa e estacionei o carro no interior, carro esse mais cheio de malas que um toxicodependente de comichões quando está a ressacar.
Depois das apresentações iniciais e da “voltinha de reconhecimento”, juntamente com os alunos da escola de Santarém, visitámos o serviço no qual iremos estagiar, clínica psiquiátrica IV, situado num 1º andar de um dos muitos pavilhões que constituem este parque. Passava pouco tempo depois de entrarmos no serviço quando demos conta do reboliço a desenvolver-se à nossa volta, imediatamente a enfermeira que estava a fazer de nossa guia agarra-me pelo braço e olhando para a uma das minhas colegas diz “vocês vêm comigo”…um doente tinha fugido. Felizmente já estava uma das enfermeiras do serviço junto dele, não tendo este tido tempo para se “esgueirar” pela porta da frente.
À medida que voltávamos para o serviço só uma coisa me passava pela cabeça, uma coisa que já sabia mas que há medida que me cruzava com pessoas que se deslocavam no sentido contrário se enraizava ainda mais, coisa essa que se tornou numa certeza confirmada…isto é só gente maluca.



Dia 2


Primeiro que tudo, começo por dizer que jogar matraquilhos com doentes psiquiátricos é uma experiência surreal…
Muitos filmes há que retratam manicómios e asilos, e sempre que via um desses filmes pensava “isto não é assim, os actores estão a exagerar”, pois bem, agora estou em perfeitas condições de afirmar, e apenas passado um dia de estágio, que não só é assim como é muito pior que nos filmes. Estar a observar estes doentes, ver as suas atitudes e reacções aos mais diversos e insignificantes estímulos é algo que faz pensar e muito, afinal, trata-se de uma doença…e tal como muitas doenças existentes, pode acontecer a todos.
Faço agora uma breve descrição do serviço no qual me encontro, clínica psiquiátrica IV, pavilhão 21b, 1º andar. À semelhança de outros pavilhões é similar a uma estrela, em que os raios são as unidades dos doentes, ou seja, os quartos. O centro da estrela é um pátio que não é frequentando, sendo rodeado por um corredor por onde os doentes deambulam, com bancos e televisores. E foi nesse corredor que um dos doentes nos pediu um cigarro, ao qual replicámos que não tínhamos e que isso fazia mal…o doente (um jovem de 25 anos que tirou o curso de gestão de empresas em Londres e “fritou” por causa da droga) aproximou-se e ficou a uma distância socialmente não muito aceitável, começando a dizer num tom de voz baixo e linear “Sabia que daqui a um ano todas as células do seu corpo de regeneram? Todas são novas?” isto enquanto outro doente dizia “tá em directo” e escrevia com a mão, sem tinta, na parede…
Um doente que me surpreendeu foi o M, um doente que me pareceu em tudo normal, jogou às cartas connosco e falou calmamente connosco, ao ponto de perguntar “o que é que será que ele tem?”, a resposta viria logo depois. O M olhou lá para fora e viu que o tempo estava a começar a ficar enublado, logo dizendo “isto tá a ficar assim mas não chove! Eu sei porque eu mando a chuva! A seca que houve no Alentejo foi porque eu quis, e só choveu agora porque fizeram uma bruxaria, porque aqueles cabrões não merecem nada”. Se a partir desta conversa já sabia uma razão do internamento, a grande causa viria logo a seguir: “Eu tava na casa de um amigo, tínhamos tado a fumar uns charros e a beber whisky, só que ele não era boa pessoa porque se metia noutras drogas. E eu nessa noite pensava que o mundo ia acabar, e pensei que ele era o Diabo e eu era Deus, como ele tinha fechado a porta à chave, pensei que ele me ia fazer mal, e mandei-me do 2º andar.”…



Dia 4


Primeira tarde que fiz, o que assusta um pouco visto que às 17:00 já começa a ficar de noite e sinceramente, aquele serviço assusta, especialmente hoje, que os doentes parece que ficaram um pouco mais nervosos e exigentes, seja pelo tabaco (causa de grandes discussões), seja por quererem sair dali por já não aguentarem estar com gente maluca, seja por quererem assinar o termo de responsabilidade…
Assistir, sem participar, nas conversas entre estes doentes dá no mínimo que pensar…
Doente 1-Porque é que pensas que as baleias dão à costa?
Doente 2-Não gosto de casacos que se incendeiam facilmente, aqueles que basta juntar o isqueiro e ardem logo todos.
D1-Mas para isso serve o alarme de incêndio, começa a apitar e tu acordas.
D2-Mas tinha de ser daqueles que deita água!
D1-Pois, aquilo apita e começa a deitar água.
D2-Mas e se aquilo está viciado por alguém e em vez de deitar água deita álcool?
Conversas destas são constantes e esta não é das mais surrealista, muitas há que não me consigo conter e tenho de sair da sala para me rir, é incontrolável. Hoje por exemplo, vi um dos doentes a chegar ao pé da televisão e mudar de canais do 1 até ao 59…quando só os primeiros 4 é que estavam sintonizados. O mesmo doente sentou-se num cadeirão e começou a conduzir um carro com movimentos muito rápidos, alternando com investidas violentas nos abdominais...

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